O
título deste texto pode parecer redundante. No entanto, nos últimos anos, temos
assistido aqui no Brasil o crescimento de um fenômeno que é, no mínimo,
curioso: o dos “cristãos” que se afastam do que, até então, conhecíamos como
cristianismo.
“Cristãos” que defendem o armamento,
a intolerância, o extermínio do outro, a morte, a miséria, a ignorância... Há
pouco vimos um país sendo dizimado por uma doença nova – a covid-19 – e, a
despeito desse tétrico quadro, um número crescente de pessoas evitando o uso da
vacina. Em janeiro de 2021, indígenas da etnia kokama, da cidade de Santo
Antônio do Içá, no Amazonas, estavam se recusando a tomar vacinas por
influência de pastores evangélicos da Igreja Mundial do Poder de Deus e da
Igreja Internacional da Graça de Deus que diziam que os imunizantes
continham “chip” com a marca da “Besta”![1]
Obviamente que nem todo cristão é
defensor de tal aberração. A recusa ao uso de vacinas foi tão evidente entre
grupos de pessoas que apresentam justificativas religiosas que um grupo
intitulado “Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito” lançou um vídeo,
disponível na plataforma do Youtube, se viu na obrigação de desmentir tais “pregações”.[2] O pastor e teólogo Ariovaldo Ramos discorreu
sobre esse assunto, mostrando que em algumas situações citadas na Bíblia, o
povo crente em Deus buscou alguma forma de imunização contra doenças (como no
caso das pragas contra o Egito). Portanto, a princípio, não existe motivo
religioso para a recusa do uso de imunizantes como a vacina.
De igual forma não existe razão para
que o cristão seja contrário à Ciência. Quando Deus criou o homem, de acordo
com o que a Bíblia narra, deu a ele o domínio sobre tudo o que vive sobre a
Terra, sejam animais, vegetais ou minerais. Ora, tal domínio só pode ser
exercido por meio do uso da inteligência e do conhecimento das coisas. Eis a
base das Ciências, o conhecimento de objetos de estudo. Quando Deus atendeu ao
pedido de Salomão para que tivesse sabedoria, foi dito que aquele rei, por meio
da graça divina, “Descreveu as plantas, desde o cedro do Líbano até o hissopo
que brota nos muros. Também discorreu sobre os quadrúpedes, as aves, os animais
que se movem rente ao chão e os peixes” (1 Rs. 4.33). Ora, não é esse o
trabalho de um cientista?
O apóstolo Paulo, homem de estudo e
de Ciência, orientava a todo cristão para que “examinasse tudo” e “retivesse o
bem” (1 Ts. 5.21). Examinar significa observar com atenção, investigar
minuciosamente. Trabalho de cientista, sem dúvida. Certamente, alguém irá
argumentar: “Mas o mesmo apóstolo disse que a sabedoria do homem é loucura para
Deus” (1 Co. 3-19). Em resposta, o que se pode dizer para essa pessoa é que
leia o texto e o contexto e pare de criar pretexto. Toda a discussão de Paulo
nesse capítulo e versículo está calcada nas divisões da Igreja que ocorriam
naquele momento porque – como seria bom se os “cristãos” tivessem aprendido
essa lição – as pessoas estavam seguindo os seres humanos (como Paulo e Apolo)
e não a Deus. O apóstolo, então, argumenta que por mais sábio que a pessoa seja
(ele mesmo se autoproclama como sábio construtor no versículo 10), nenhuma
sabedoria humana pode ultrapassar a inteligência de Deus. A mensagem, portanto,
em suma é: não seja arrogante, pois em comparação com Deus a sua sabedoria
humana não é nada.
A intolerância religiosa, indicativo
de fanatismo, é outra ação que não se coaduna com o cristianismo de fato.
Primeiro, porque fere o princípio do direito do ser humano a sua própria
escolha, algo que está implícito na própria criação. Afinal, mesmo cobrando as
consequências dos atos humanos, Deus sempre deixou sua criatura livre para a
escolha. Porém, grupos religiosos se colocam como “justiceiros” de Deus e
aprontam coisas terríveis. O Brasil foi denunciado na ONU por indígenas que
reclamaram da ação de grupos evangélicos que queimaram as casas de reza do
Guarani-Kaiowá.[3]
Seria cansativo aqui listar as casas e terreiros de Umbanda e Candomblé que
foram vandalizadas e destruídas nos últimos anos por fundamentalistas
religiosos pertencentes a denominações “cristãs”.
Mas qual é o exemplo deixado por
Cristo? No Evangelho de Lucas, capítulo 9, os discípulos de Jesus não foram
recebidos num povoado samaritano por questões de diferença religiosa. Como os
samaritanos perceberam que Jesus e seus discípulos se dirigiam a Jerusalém,
para cumprir seus propósitos religiosos no Templo, não quiseram dar-lhes
guarida. Tiago e João não se contiveram e perguntaram ao Mestre se ele desejava
destruí-los com “fogo do céu”, ao que Jesus respondeu: "Vocês não sabem de
que espécie de espírito vocês são, pois o Filho do homem não veio para destruir
a vida dos homens, mas para salvá-los" (Lc. 9.55).
É esse o cristianismo que faz falta
nos tempos de hoje, o verdadeiro sal da Terra.
Carlos
Carvalho Cavalheiro
31.01.2023
[1] https://cultura.uol.com.br/noticias/16111_pastores-evangelicos-estao-influenciado-indigenas-a-nao-tomarem-vacina-contra-a-covid-19-conta-lideranca.html
[2] https://www.youtube.com/watch?v=C5YNV2sY8GQ
[3] https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2022/03/10/na-onu-brasil-e-denunciado-por-ofensiva-de-evangelicos-contra-indigenas.htm