terça-feira, 31 de janeiro de 2023

O cristão e o cristianismo

 

Crédito da imagem: https://observatorio3setor.org.br/noticias/parteiras-indigenas-e-ate-criancas-foram-mortos-pela-inquisicao/

O título deste texto pode parecer redundante. No entanto, nos últimos anos, temos assistido aqui no Brasil o crescimento de um fenômeno que é, no mínimo, curioso: o dos “cristãos” que se afastam do que, até então, conhecíamos como cristianismo.

            “Cristãos” que defendem o armamento, a intolerância, o extermínio do outro, a morte, a miséria, a ignorância... Há pouco vimos um país sendo dizimado por uma doença nova – a covid-19 – e, a despeito desse tétrico quadro, um número crescente de pessoas evitando o uso da vacina. Em janeiro de 2021, indígenas da etnia kokama, da cidade de Santo Antônio do Içá, no Amazonas, estavam se recusando a tomar vacinas por influência de pastores evangélicos da Igreja Mundial do Poder de Deus e da Igreja Internacional da Graça de Deus​ que diziam que os imunizantes continham “chip” com a marca da “Besta”![1]

            Obviamente que nem todo cristão é defensor de tal aberração. A recusa ao uso de vacinas foi tão evidente entre grupos de pessoas que apresentam justificativas religiosas que um grupo intitulado “Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito” lançou um vídeo, disponível na plataforma do Youtube, se viu na obrigação de desmentir tais “pregações”.[2]  O pastor e teólogo Ariovaldo Ramos discorreu sobre esse assunto, mostrando que em algumas situações citadas na Bíblia, o povo crente em Deus buscou alguma forma de imunização contra doenças (como no caso das pragas contra o Egito). Portanto, a princípio, não existe motivo religioso para a recusa do uso de imunizantes como a vacina.

            De igual forma não existe razão para que o cristão seja contrário à Ciência. Quando Deus criou o homem, de acordo com o que a Bíblia narra, deu a ele o domínio sobre tudo o que vive sobre a Terra, sejam animais, vegetais ou minerais. Ora, tal domínio só pode ser exercido por meio do uso da inteligência e do conhecimento das coisas. Eis a base das Ciências, o conhecimento de objetos de estudo. Quando Deus atendeu ao pedido de Salomão para que tivesse sabedoria, foi dito que aquele rei, por meio da graça divina, “Descreveu as plantas, desde o cedro do Líbano até o hissopo que brota nos muros. Também discorreu sobre os quadrúpedes, as aves, os animais que se movem rente ao chão e os peixes” (1 Rs. 4.33). Ora, não é esse o trabalho de um cientista?

            O apóstolo Paulo, homem de estudo e de Ciência, orientava a todo cristão para que “examinasse tudo” e “retivesse o bem” (1 Ts. 5.21). Examinar significa observar com atenção, investigar minuciosamente. Trabalho de cientista, sem dúvida. Certamente, alguém irá argumentar: “Mas o mesmo apóstolo disse que a sabedoria do homem é loucura para Deus” (1 Co. 3-19). Em resposta, o que se pode dizer para essa pessoa é que leia o texto e o contexto e pare de criar pretexto. Toda a discussão de Paulo nesse capítulo e versículo está calcada nas divisões da Igreja que ocorriam naquele momento porque – como seria bom se os “cristãos” tivessem aprendido essa lição – as pessoas estavam seguindo os seres humanos (como Paulo e Apolo) e não a Deus. O apóstolo, então, argumenta que por mais sábio que a pessoa seja (ele mesmo se autoproclama como sábio construtor no versículo 10), nenhuma sabedoria humana pode ultrapassar a inteligência de Deus. A mensagem, portanto, em suma é: não seja arrogante, pois em comparação com Deus a sua sabedoria humana não é nada.

            A intolerância religiosa, indicativo de fanatismo, é outra ação que não se coaduna com o cristianismo de fato. Primeiro, porque fere o princípio do direito do ser humano a sua própria escolha, algo que está implícito na própria criação. Afinal, mesmo cobrando as consequências dos atos humanos, Deus sempre deixou sua criatura livre para a escolha. Porém, grupos religiosos se colocam como “justiceiros” de Deus e aprontam coisas terríveis. O Brasil foi denunciado na ONU por indígenas que reclamaram da ação de grupos evangélicos que queimaram as casas de reza do Guarani-Kaiowá.[3] Seria cansativo aqui listar as casas e terreiros de Umbanda e Candomblé que foram vandalizadas e destruídas nos últimos anos por fundamentalistas religiosos pertencentes a denominações “cristãs”.

            Mas qual é o exemplo deixado por Cristo? No Evangelho de Lucas, capítulo 9, os discípulos de Jesus não foram recebidos num povoado samaritano por questões de diferença religiosa. Como os samaritanos perceberam que Jesus e seus discípulos se dirigiam a Jerusalém, para cumprir seus propósitos religiosos no Templo, não quiseram dar-lhes guarida. Tiago e João não se contiveram e perguntaram ao Mestre se ele desejava destruí-los com “fogo do céu”, ao que Jesus respondeu: "Vocês não sabem de que espécie de espírito vocês são, pois o Filho do homem não veio para destruir a vida dos homens, mas para salvá-los" (Lc. 9.55).

            É esse o cristianismo que faz falta nos tempos de hoje, o verdadeiro sal da Terra.

 

Carlos Carvalho Cavalheiro

31.01.2023



[1] https://cultura.uol.com.br/noticias/16111_pastores-evangelicos-estao-influenciado-indigenas-a-nao-tomarem-vacina-contra-a-covid-19-conta-lideranca.html

[2] https://www.youtube.com/watch?v=C5YNV2sY8GQ

[3] https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2022/03/10/na-onu-brasil-e-denunciado-por-ofensiva-de-evangelicos-contra-indigenas.htm


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