sábado, 4 de setembro de 2021

O cristão e o armamento

 


            A mensagem de Jesus Cristo é a do amor. Um amor tão extremado que deveria abarcar até mesmo os nossos inimigos. Jesus disse claramente que deveríamos amar nossos inimigos e fazer o bem aos que nos odiassem (Mt. 5.39 – 42; Lc. 6.27). Em momento algum Jesus insuflou seus discípulos a se armarem, muito menos para uma “guerra santa” ou “espiritual”.

            Aliás, o conceito é contraditório: se a guerra é espiritual, por que a necessidade de armamentos? Infelizmente, muitos que se dizem cristãos defendem hoje em dia o uso de armas para defesa da fé e, o que é ainda mais estarrecedor, para se defender dos inimigos!

            Bom, sobre a necessidade de se “defender” dos inimigos, talvez falte um pouco do conhecimento da Palavra ou mesmo fé naquilo que está escrito. Porque, conforme o que se pode ler na Bíblia, especificamente em 1 Jo 5.18, a mensagem diz: “Sabemos que todo aquele que é nascido de Deus não peca; mas o que de Deus é gerado conserva-se a si mesmo, e o maligno não lhe toca”. Esse é um ensinamento que vem desde o Antigo Testamento, qual seja, aquele que anda com Deus (ou, em outras palavras, segue os seus preceitos) não deve temer inimigo algum. Em Is 54.17 lê-se: “nenhuma arma forjada contra você prevalecerá, e você refutará toda língua que a acusar. Esta é a herança dos servos do Senhor, e esta é a defesa que faço do nome deles", declara o Senhor”.

            Também no livro dos Salmos (91.10 – 12) encontra-se a seguinte mensagem: “Nenhum mal te sucederá, nem praga alguma chegará à tua tenda. Porque aos seus anjos dará ordem a teu respeito, para te guardarem em todos os teus caminhos. Eles te sustentarão nas suas mãos, para que não tropeces com o teu pé em pedra”.

            Há quem possa argumentar que Jesus ordenou a seus discípulos, nas últimas horas antes de ser preso, para que vendessem a capa para comprar uma espada, conforme o texto de Lc. 22.35 – 38. É admissível que o texto é controverso e deu origem a diversas exegeses. Porém, se analisarmos detidamente todo o contexto, há uma explicação plausível.

            O texto completo é este: “E disse-lhes: Quando vos mandei sem bolsa, alforje, ou alparcas, faltou-vos porventura alguma coisa? Eles responderam: Nada.

Disse-lhes pois: Mas agora, aquele que tiver bolsa, tome-a, como também o alforje; e, o que não tem espada, venda a sua capa e compre-a; Porquanto vos digo que importa que em mim se cumpra aquilo que está escrito: E com os malfeitores foi contado. Porque o que está escrito de mim terá cumprimento. E eles disseram: Senhor, eis aqui duas espadas. E ele lhes disse: Basta”.

             A maioria dos exegetas concorda que a fala de Jesus neste trecho não deve ser entendida de maneira literal. Nos comentários da Bíblia de Jerusalém, por exemplo, pode-se verificar a seguinte interpretação: “Uma bolsa para comprar víveres, uma espada para obtê-los à força: expressões simbólicas para descrever a hostilidade universal (cf. 12,51)”. E, a seguir, o comentário sobre a apresentação das duas espadas: “Os apóstolos não compreenderam as palavras do Mestre, entendendo sua intenção em sentido material. Jesus põe fim ao assunto”.

            Há outras hermenêuticas sobre esse trecho apontando para uma previsão sobre a perseguição que os cristãos sofreriam. Mas, nenhuma delas pensa ser literal o pedido de Jesus para que os apóstolos se armassem. Seria ridículo pensar que o Filho de Deus – conforme o entendimento dos próprios cristãos – se sentisse seguro com a presença de duas espadas em seu grupo de onze seguidores!

            Porém, há um detalhe na fala de Jesus que chama a atenção. Ele cita o profeta Isaías para dizer que o Messias deveria ser contado entre os malfeitores (Is 53.12). Ora, se o grupo de apóstolos estivesse desarmado quando da chegada dos soldados do Templo, Jesus não poderia ser “contado entre os criminosos ou malfeitores”, pois aqueles que andavam armados, sem serem soldados, eram tidos por bandoleiros. Aliás, civis armados de fato representam perigo em qualquer tempo.

            A providência das espadas, portanto, parece que tinha por finalidade o cumprimento da profecia de Isaías. Ao menos foi assim que Jesus se manifestou. Entender essa passagem de maneira diferente significa criar outro problema logo adiante. Isso porque, o próprio Jesus disse ao seu apóstolo que se utilizou da espada para tentar reprimir os soldados: “Guarda a tua espada no seu lugar, pois todos os que pegam a espada pela espada perecerão. Ou pensas tu que eu não poderia apelar para o meu Pai, para que Ele pusesse à minha disposição, agora mesmo, mais de doze legiões de anjos?” (Mt. 26.52).

            E o que dizer de Davi e Josué, heróis da Bíblia e que lutaram com suas armas contra os inimigos de Israel? É preciso entender o contexto e o período das Alianças de Deus para com os homens. Na época do Antigo Testamento, havia a necessidade de que as promessas de Deus se cumprissem de modo a que o povo de Israel se mantivesse fiel, porque desse povo nasceria o Messias. No entanto, para quem insiste em permanecer voltado para a aliança do Antigo Testamento, deverá conhecer o que diz o livro de Hebreus: “Contudo, agora, Jesus recebeu um ministério ainda mais excelente que o dos sacerdotes, assim como também a aliança da qual Ele é o mediador; aliança muito superior à antiga, pois que é fundamentada em promessas excelsas” (Hb 8.6).

            A escolha do verdadeiro cristão deve ser pela nova aliança, aquela que estabeleceu o amor como maior mandamento.

 

04.09.2021

Carlos Carvalho Cavalheiro

 

domingo, 3 de janeiro de 2021

O cristão e o conservadorismo

 

 
Fonte da Imagem: https://br.blastingnews.com/sociedade-opiniao/2017/01/o-brasileiro-tem-posicao-politica-conservadora-ou-liberal-001405697.html

            Tornou-se até lugar comum ouvir a frase: “Sou cristão conservador”. O que realmente essa sentença quer dizer? Aparentemente, é o “cristão” que defende a preservação das instituições tradicionais da sociedade. A reboque, esse conservadorismo carrega também a defesa do capitalismo, da exploração dos trabalhadores, da manutenção das divisões sociais (ricos e pobres), da hierarquização burguesa, ou seja, aquela calcada na valorização dos indivíduos a partir de questões financeiras, do desprezo a outras formas de pensar, da intolerância religiosa.

            Para manter esse status quo algumas denominações e grupos que se consideram cristãos têm se aproximado de governos autoritários, excludentes, com um verniz de fascismo. O mesmo lema dos fascistas integralistas (Deus, Pátria e Família) tem sido absorvido nos discursos desses “cristãos conservadores”. A intolerância religiosa, por questões de gênero, etnia ou classe social têm recebido uma “justificativa” supostamente cristã. Estabelece-se quase que uma cruzada religiosa entre os “bons” e os “maus”. Mas, o cristão deve optar pelo conservadorismo? Cristo era conservador? Cristo era intolerante?

            Desde o seu nascimento, Cristo não fez distinção de pessoas de outra vertente religiosa. Enquanto os judeus tradicionais – os conservadores da época – não o reconheciam como o Messias nascido, os pobres (pastores) e os “pagãos” (Magos) vieram adorá-Lo. Diz o texto bíblico: “E, tendo nascido Jesus em Belém de Judéia, no tempo do rei Herodes, eis que uns magos vieram do oriente a Jerusalém,
Dizendo: Onde está aquele que é nascido rei dos judeus? porque vimos a sua estrela no oriente, e viemos a adorá-lo” (Mt 2.1,2). Logo a seguir, o texto esclarece: “E, tendo eles ouvido o rei, partiram; e eis que a estrela, que tinham visto no oriente, ia adiante deles, até que, chegando, se deteve sobre o lugar onde estava o menino. E, vendo eles a estrela, regoziram-se muito com grande alegria.

E, entrando na casa, acharam o menino com Maria sua mãe e, prostrando-se, o adoraram; e abrindo os seus tesouros, ofertaram-lhe dádivas: ouro, incenso e mirra” (Mt 2.9-11).

            Magos do Oriente eram sábios – não judeus – provavelmente da Pérsia e que acreditavam nos sinais da natureza, especialmente em astros. Não foram sacerdotes judeus, nem fariseus ou saduceus, os que reconheceram a divindade de Cristo primeiro. Antes, povos que se dedicavam ao estudo dos astros, dos sinais da natureza, da magia (eram Magos!).

            Jesus respeitava os samaritanos, povo desprezado pelos judeus “conservadores” por questões étnicas, religiosas e costumes. Diz O. S. Boyer, em sua “Pequena Enciclopédia Bíblica” que “quando as dez tribos [do reino de Israel] foram transportadas para o cativeiro na Assíria, milhares dos pobres ficaram na terra. Sargom II, rei da Assíria, trouxe gente de Babilônia, de Cuta, de Ava, de Hamate e de Sefarvaim, para colonizar o país, 2 Rs 17,24. Isso resultou numa raça mestiça, Ed 4,2 com vv. 9, 10. [...] Os samaritanos baseavam sua religião somente no Pentateuco, rejeitando o resto do Antigo Testamento. Observavam o sábado, as festas, a circuncisão” (BOYER, 1997, p. 562).

            Apesar dos judeus “conservadores” não se darem bem com os samaritanos, por diversas vezes Jesus enalteceu alguns deles por sua conduta. Assim foi com o único leproso, dentre dez outros, que curado voltou para agradecer, conforme Lc 17.16. Esse era samaritano. Também, na parábola do samaritano, o único a acudir o homem ferido foi um samaritano. A mulher samaritana do poço foi uma das que creu em Jesus (Jo 4.1-42).

            Jesus não era intolerante quanto à religião alheia. Quando Tiago e João pediram a destruição de uma aldeia samaritana, com “fogo do céu para consumi-la”, por sua população não ter sido hospitaleira, Jesus repreendeu os seus discípulos (Lc 9.52-55). Jesus também permitiu que uma mulher siro-fenícia recebesse a sua cura devido a sua fé. Mesmo sendo de um grupo religioso diferente, a mulher foi abençoada (Mc 7.24-30).

            Jesus também não se deixava levar por outras questões de ordem social ou de costumes. Não condenou a adúltera (embora pedisse a ela para não mais continuar em seu pecado), conforme Jo 8.3-11. Ao contrário dos outros judeus “conservadores”, Jesus não desprezava a mulher. Entre as pessoas mais próximas dele estavam mulheres como Maria Madalena, Marta e Maria, irmãs de Lázaro, dentre outras. Jesus recebeu a mulher pecadora (Lc 7.36-50), conversou (e, portanto, de certa forma, escolheu) a mulher samaritana do poço...

            Não fez distinção entre homens e mulheres, não era misógino e nem machista (embora esses conceitos sejam mais apropriados para a nossa época, sendo até anacronismo conduzi-los ao primeiro século). Os termos aqui usados são referenciais, para facilitar o entendimento. O que se quer dizer é que Jesus não estabeleceu diferença e desigualdade entre mulheres e homens, como era o costume da época. O status quo daquele momento histórico.

            Não condenou nem mesmo as prostitutas. Ao contrário, as colocou acima dos “conservadores” fariseus: “Em verdade vos digo que os publicanos e as prostitutas vos precedem no Reino de Deus. Porque João veio a vós no caminho da justiça, e não crestes nele, mas os cobradores de impostos e as prostitutas nele creram; vós, porém, vendo isto, nem depois vos arrependestes para crer nele” (Mt 21.31-32).

            O que Jesus condenava mesmo era a hipocrisia, o “farisaísmo” das aparências (sepulcro caiado, em Mt 23.25-28), do cumprimento vazio dos ritos (pagam o dízimo e deixam de lado os ensinamentos importantes da Lei como a justiça, a misericórdia e a fidelidade, em Mt 23.23), dos que exploram a fé em troca do enriquecimento (os vendilhões do Templo, em Jo 2.13).

            Ao contrário de ser conservador, Jesus foi alguém que veio revolucionar os costumes. Tanto que os “conservadores” de sua época o acusavam de ser amigo de pecadores: “Veio o Filho do homem, que come e bebe, e dizeis: Eis aí um homem comilão e bebedor de vinho, amigo dos publicanos e pecadores” (Lc 7.34).

            Em verdade, foi o conservadorismo da época que crucificou Jesus.

 

 

Carlos Carvalho Cavalheiro

03.01.2021